14 Junho 2023
O estadunidense Joseph E. Stiglitz é um dos economistas mais renomados e citados do mundo. O Prêmio Nobel de Economia de 2001, ex-economista-chefe do Banco Mundial e professor da Universidade Columbia, em Nova York, participou de um fórum com empresários, políticos e especialistas alemães e austríacos, em Palma de Mallorca [Espanha], organizado pela consultoria fiscal PlattesGroup. Pouco antes, havia participado da cúpula do G7, em Hiroshima. Aos 80 anos, Stiglitz responde às perguntas com as tabelas e o humor de um professor experiente em mil debates.
A entrevista é de Ciro Krauthausen, publicada por El Periódico, 12-06-2023. A tradução é do Cepat.
As políticas protecionistas estão ganhando terreno em todo o mundo. Você diria que a ordem mundial neoliberal entrou em sua fase final?
Sim, merecidamente. Deu lugar a um crescimento menor ao de antes do neoliberalismo e todo esse crescimento foi para as mãos dos de cima. Criou mais desigualdade e mais instabilidade. O lamentável é que os princípios do level playing field, da igualdade de condições que eram fundamentais para a Organização Mundial do Comércio (OMC) e o mundo, não foram substituídos por nada. Até certo ponto, não existem mais regras. E isso é obviamente muito inquietante.
Estamos também diante do fim da expansão do comércio global?
O comércio global iria se contrair de qualquer forma devido à estrutura das economias. Caminhamos para serviços que são menos comercializáveis do que os bens. As energias renováveis em vez do petróleo, por exemplo.
Fala-se de uma economia mundial fragmentada.
Menos integrada é uma descrição melhor. Também será fragmentada, mas isso tem a ver com a nova guerra fria.
Concorda com quem pensa que a Europa deveria se desvincular da China, como os Estados Unidos já estão tentando fazer?
Prefiro o termo utilizado pelos europeus: de-risking. Ou seja, reduzir os riscos e se tornar menos dependente. Pode ser que seja necessário levantar uma pergunta: onde estaríamos se o que é uma guerra fria suave se transformasse em uma guerra fria mais intensa?
A inter-relação com a China é muito forte. É possível rompê-la?
Sim, é forte, mas na maioria das coisas que são produzidas lá, a China não tem o monopólio da capacidade de produzi-las. O Ocidente poderia produzi-las. Pode ser que tenhamos que pagar mais por isso, mas não seria o fim do mundo se, por exemplo, os iPhones custassem um pouco mais.
Custariam muito mais.
Não muito mais porque as margens de lucro são enormes. Grande parte do valor extra vai para os acionistas da Apple (risos). O preço aumentaria um pouco. Os acionistas da Apple obteriam um pouco menos. Então, haveria ajustes. E é até concebível que, em termos gerais, o ritmo de aumento do nível de vida possa diminuir.
Essa é a perspectiva dos países desenvolvidos. Como os países em desenvolvimento veem isso?
Existem dois ou três aspectos. Em primeiro lugar, há uma longa história de colonialismo, que moldou seus pontos de vista. Depois, existe a era do neocolonialismo, em que se tornaram politicamente independentes. E depois as consequências de tudo isso na pandemia, quando os acordos da OMC para a proteção de patentes supuseram que pessoas entre eles morressem e que nossas empresas farmacêuticas se enriquecessem.
Nada poderia ter demonstrado melhor o neocolonialismo. Claramente, ficaram enfurecidos que estivéssemos colocando os lucros de gigantescas corporações à frente de suas vidas. Então, começou a guerra e, de repente, tiveram que enfrentar o aumento dos preços do petróleo e dos alimentos, e nós não os ajudamos em absoluto.
Além disso, durante a pandemia, fornecemos enormes recursos à nossa economia, enquanto eles não tinham meios financeiros suficientes. Tiveram que se endividar. E, depois, respondemos à inflação aumentando as taxas de juros, o que cria uma crise de dívida em muitos países. Não é de estranhar, portanto, que digam: essa guerra não é nossa, é de vocês. Na minha opinião, a guerra tem a ver com o direito internacional, mas é isso que eles dizem.
Qual pode ser o tamanho da crise da dívida em consequência dos aumentos de juros?
Provavelmente, não será uma crise sistêmica da dívida, mas para países como Zâmbia, Gana e Sri Lanka é um problema importante. Um número significativo de países estão em risco.
O que fazer? Parar de aumentar as taxas?
Sim, mas é preciso mais do que isso. Já lançamos uma iniciativa de suspensão da dívida, mas não é fácil. O setor privado se recusou e a China se mostrou muito lenta na hora de cooperar. Antes, nas crises de dívida, havia um número limitado de credores. Agora, você se encontra com um montão de interesses muito diferentes. O que está sendo debatido no estado de Nova York é um passo importante na boa direção: uma lei que faria o setor privado assumir uma redução da dívida proporcional à que o governo assume.
Qual é o risco de uma crise bancária em consequência dos aumentos de taxas?
Devido à falta de transparência, não sabemos realmente. Há quem analisou e disse que há uma série de bancos que correm quase o mesmo risco que os bancos regionais que quebraram nos Estados Unidos. E também sabemos que, hoje, as pessoas podem sacar dinheiro de seu banco com muita facilidade. A tecnologia aumentou todos os riscos bancários. O que não sabemos é o risco do portfólio. Houve melhorias nas bases de capital, sim. Contudo, também sabemos que as provas de estresse do Federal Reserve são ineficazes. Isso deveria nos incomodar.
E qual é a dimensão do risco de uma crise imobiliária?
A preocupação se concentra no mercado imobiliário comercial. Se não houvesse dívida, não seria um problema. Sempre existem aqueles que perdem dinheiro e aqueles que lucram. As pessoas no setor imobiliário comercial apostaram mal. Em sua maioria, são pessoas ricas, então, poderiam assumir as perdas, mas quando isso é transferido para o sistema bancário pode se tornar um problema maior. Tudo isso como consequência de um acontecimento sem precedentes e uma mudança imprevisível na estrutura. Quem poderia prever que as pessoas deixariam de ir para os escritórios, preferindo trabalhar em casa?
Em termos de inovação e tecnologia, os países europeus, e em especial a Alemanha, estão com muito receio de ficar para trás da China e dos Estados Unidos. Você enxerga motivos para isso?
Eu vejo muito mais fortalezas. Antes de 2008, ouvia a mesma coisa: que a Europa estava ficando para trás dos Estados Unidos. E depois se viu que a economia estadunidense se baseava em um castelo de cartas. Hoje, se você perguntar qual é o motor subjacente de nosso setor tecnológico: é a publicidade. Não tem como ser uma boa economia, se tudo gira em torno de vender e não de produzir e aumentar a qualidade de vida das pessoas.
Como estadunidense, quando você vai para a Europa observa a diferença na qualidade de vida. Olho para os dados e vejo que a expectativa de vida dos estadunidenses é menor. As disparidades são enormes. Se permitissem que você caísse aleatoriamente em um país sem saber se estaria entre os 5% da população com renda superior, iria preferir cair na Dinamarca ou nos Estados Unidos?
Na Dinamarca.
Sim, e se você soubesse que seria Bill Gates, iria preferir cair nos Estados Unidos (risos). É preciso pensar nesta perspectiva. Penso que a Europa é inovadora em muitos aspectos. Eu gostaria que houvesse mais financiamento público para a pesquisa básica, mas a capacidade da Alemanha, por exemplo, de traduzir a pesquisa em produção é realmente impressionante. Obviamente, precisam se diversificar, há muita dependência da China. Mas quando olho para a Europa, de onde vem grande parte da inovação eólica? Da Espanha e Portugal. É um erro desmerecer esse potencial inovador.
As chamadas autocracias estão ganhando espaço. Elas colocam em risco a democracia como o melhor modelo de organização da sociedade e da economia?
Não, os governos autoritários não têm se saído bem economicamente. A China desacelerou.
De um nível muito alto.
Sim, tem tido sucesso em recuperar terreno. Contudo, se olharmos para a qualidade de vida, e parte da qualidade de vida é ter controle sobre as decisões importantes que afetam sua vida, os governos autoritários são terríveis.
Mesmo assim, votam neles.
Sim, mas isso é outra questão. Por muito tempo, investimos pouco em educação e permitimos que 40 anos de neoliberalismo gerassem ressentimentos. Isso é difícil de reverter. Temos que agir. Os regimes autoritários são populistas no pior sentido da palavra. Prometem muito e cumprem pouco.
Parte disso é que não acreditam nas restrições orçamentárias. Então, antes das eleições, gastam muito dinheiro. Mas, isso não é sustentável, não estão criando um ambiente inovador. A maioria deles é antieducação. Assim como Trump, odeiam as universidades. Como você pode ter uma economia inovadora, quando odeia as universidades? Penso que estão em um beco sem saída. É o que espero.
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“O neoliberalismo entrou, merecidamente, em sua fase final”. Entrevista com Joseph Stiglitz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU